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BELÉM ENTRE A COP E O LIXO

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Enquanto se prepara para sediar a conferência da ONU sobre mudanças climáticas em 2025, a capital do Pará não sabe o que fazer com os próprios rejeitos

Sentado no meio-fio de uma rua em Marituba, Ailson Oliveira rememora o passado. O município, parte da Região Metropolitana de Belém, já foi muito diferente. Era pacato e, apesar da pobreza, vivia-se bem. A natureza era abundante, como em tantas cidades erguidas à beira da Amazônia. Mas a paisagem começou a mudar nos últimos trinta anos, conforme Marituba se desenvolvia a reboque da capital. Tornou-se uma típica cidade-dormitório, onde boa parte dos habitantes sai para trabalhar todos os dias em municípios vizinhos, especialmente Belém. Aumentaram os índices de violência, o comércio, o número de edifícios e a população. O IBGE contou 74 mil maritubenses em 2000; hoje, segundo o último Censo, são 110 mil.

Mas, do ponto de vista de Oliveira, mototaxista de 39 anos que sempre viveu na cidade, a mudança mais importante ocorreu em 2015. Naquele ano, depois de fechar um grande lixão na cidade vizinha de Ananindeua, o governo paraense abriu em Marituba um aterro sanitário para dar vazão ao lixo produzido na própria cidade, em Ananindeua e em Belém. A medida tinha respaldo de ambientalistas: aterros sanitários são uma solução mais sustentável do que lixões, já que neles os resíduos passam por tratamento, em vez de serem simplesmente depositados a céu aberto.

Em pouco tempo, no entanto, os moradores notaram que algo não estava certo. Quem vivia nas redondezas sentia ondas fortíssimas de mau odor, às vezes acompanhado de uma sensação de ardência no nariz e na garganta – relatos incompatíveis com o que se espera um aterro sanitário, que deveria conter a emissão de gases tóxicos emanados pelo lixo. O alerta acendeu de vez com a proliferação de pragas urbanas e problemas respiratórios.

“O odor é insuportável. Quando começa, dá ânsia de vômito. Se alguém estiver fazendo uma refeição, tem que parar e guardar na hora”, diz Oliveira. “Uma estratégia dos moradores, quando isso acontece, é pegar álcool, molhar em um pano e colocar no nariz para esperar passar. O cheiro costuma durar de cinco a dez minutos.” A rotina tem sido essa há oito anos.

Oliveira vive no Conjunto Albatroz, comunidade de Marituba criada por programas habitacionais. Fica ao lado do aterro sanitário e, por isso, é a área mais afetada. “É preocupação com rato, com catita, carapanã, urubu – mosca nem se fala”, enumera o mototaxista. A população também alertou, desde o princípio, para danos causados aos igarapés da região, que começavam a mostrar sinais de contaminação causada pelo lixo. Segundo a prefeitura de Marituba, o aterro recebe diariamente cerca de 1.500 toneladas de resíduos sólidos.

Um ano depois da instalação do aterro, moradores organizaram um protesto que fechou a BR-316, rodovia que cruza Marituba, e chamou atenção da imprensa paraense. Eles pediam que o governo tomasse providências contra a Guamá Tratamento de Resíduo (GTR), empresa responsável pelo aterro. Novas manifestações ocorreram em 2017. Pressionado, o governo tomou para si a operação. Seguiu-se uma novela jurídica: o Ministério Público, depois de investigar os danos causados à população e ao meio ambiente, denunciou a GTR e outras três empresas do grupo Solví (do qual a GTR faz parte) por dano ambiental e poluição. Argumentou que o aterro não dava tratamento adequado ao chorume e aos gases produzidos ali. Três diretores do grupo empresarial foram presos e hoje recorrem em liberdade. O MP também pediu que as prefeituras de Marituba, Belém e Ananindeua fossem multadas por negligência.

As atividades do aterro, no entanto, nunca foram suspensas. Enquanto responde a processos judiciais, a GTR reclama de não ter sido devidamente paga pelas prefeituras e quer encerrar o negócio. Mas, como não há outra cidade que se disponha a sediar um novo aterro, a Justiça impediu até aqui, por meio de decisões liminares, que a Guamá acabe com a operação.

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Amarrada ao imbróglio, Marituba continua tapando o nariz. E o poder público ainda não sabe o que fazer com o lixo dos quase 2 milhões de habitantes dos três municípios.

Segunda maior cidade da Amazônia, Belém sediará daqui a dois anos a 30ª edição da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30). São esperados chefes de Estado e lideranças de todo o mundo, incluindo o Papa Francisco. O governo brasileiro, quando se candidatou para sediar o evento, destacou a importância simbólica de se discutir o futuro do planeta no meio da Floresta Amazônica. Pouco se falou do fato de que Belém enfrenta, em seu próprio quintal, um problema básico de destinação de lixo que afeta o meio ambiente.

A questão não se restringe a Belém. O Brasil lida mal com o próprio lixo: no ano passado, 39% dos resíduos sólidos foram descartados de forma inadequada, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos (Abrelpe). A Política Nacional de Resíduos Sólidos, sancionada por Lula em 2010, estabeleceu prazo até 2024 para que todos os lixões do país sejam fechados. As prefeituras agora correm contra o tempo. A solução mais adotada é a criação de aterros sanitários, mas essas operações nem sempre são rigorosas no respeito ao meio ambiente e à população, como mostra o caso de Marituba.

O aterro criado pelo governo do Pará foi tema de duas teses de doutorado e uma de mestrado no Instituto Evandro Chagas (IEC), instituição científica vinculada ao Ministério da Saúde e sediada em Belém. As três pesquisas indicaram a presença de metais tóxicos e resíduos orgânicos no corpo das pessoas que vivem perto do aterro, assim como nos riachos da região, entre eles o igarapé Pau Grande. Para Rosivaldo Mendes, pesquisador e especialista em Saúde Pública da Seção de Meio Ambiente do IEC, “os resultados revelam que as alterações nos parâmetros das águas superficiais estão em desacordo com a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) 357/2005”, que estabelece um limite tolerável para a presença de elementos tóxicos em cursos d’água.

A pedido do Ministério Público, o professor da Faculdade de Meteorologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) Breno Imbiriba está analisando indícios de contaminação do ar nas redondezas do aterro sanitário. O estudo, ainda não concluído, investiga se os picos de gases tóxicos registrados na região estão relacionados ao lixo. Os gases são dois: metano (CH4) e sulfídrico (H2S). Imbiriba diz que, além de produzirem mau odor, eles podem acarretar problemas de saúde – “principalmente em pessoas sensíveis, como os asmáticos”.

Procurada pela piauí, a GTR negou os problemas apontados pelos pesquisadores. A empresa afirmou, por nota, que a cada dois meses faz testes para medir a possível contaminação dos rios e lagos da região. Os laudos, diz a GTR, “atestam que o aterro sanitário se mantém operando sem alteração da qualidade ambiental dos recursos hídricos”. A empresa também diz que vem atuando para conter o mau cheiro – mas diz que essa é uma “consequência inevitável das operações que envolvem a manipulação e a eliminação de resíduos”.

Yao Makini, de 42 anos, mora em Ananindeua, cidade de 479 mil habitantes que faz divisa com Marituba. Na infância, ela adorava brincar na chuva e tomar banho de rio. De uns anos para cá, no entanto, tornou-se pouco aconselhável fazer isso. Makini vive no quilombo do Abacatal, que, embora seja distante 5 km do aterro sanitário, sente os impactos do lixo acumulado ali. “Essa contaminação nos privou de viver como trinta anos atrás”, ela lamenta. “Eu tinha uma liberdade, quando criança, que hoje as crianças do território não têm mais.”

O igarapé ‘Pau Grande’, que nos estudos do IEC mostrou sinais de estar contaminado com metais tóxicos e outros resíduos, é um afluente do igarapé Uriboquinha, que banha o quilombo do Abacatal. Os moradores dali sempre consumiram água do riacho, além de usá-lo para tomar banho e em outras necessidades cotidianas. Já não podem mais fazê-lo.

O dano à população não foi o único argumento usado pelo Ministério Público contra o aterro sanitário. Os promotores acusam o consórcio de empresas de uma série de crimes ambientais, como desmatamento sem autorização e abertura irregular de lagoas para armazenar chorume. A denúncia foi apresentada em 2017. No ano seguinte, o consórcio anunciou que, por não estar recebendo pagamento das prefeituras, fecharia o aterro em 2019. Mas o Tribunal de Justiça do Pará não permitiu. Depois de uma audiência de conciliação entre as empresas e os municípios, ficou acordado que o aterro sanitário continuaria funcionando até, no mínimo, junho de 2021.

Em média, aterros têm vida útil de dez anos, período que pode ser ainda menor a depender das características do local. Os fatores que garantem a longevidade de um empreendimento assim são: adequada impermeabilidade do solo, captura e tratamento de chorume, clima de baixa umidade e, principalmente, acompanhamento da coleta seletiva. O aterro de Marituba não apenas acumula indícios de negligência no trato do lixo como foi construído numa cidade com índices elevados de umidade, traço compartilhado por quase todas as cidades amazônicas.

Apesar disso tudo, o aterro está a pleno vapor. Quando o prazo de 2021 chegou ao fim, a Justiça o estendeu por três meses. E assim tem sido desde então: em agosto deste ano, o desembargador Luiz Gonzaga da Costa Neto esticou por mais noventa dias o funcionamento do aterro, argumentando que não há outro local onde possa ser despejado o lixo da Grande Belém. O prazo, desta vez, se encerra em 30 de novembro. A piauí perguntou ao governo do Pará, à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade e à prefeitura de Belém, por e-mail, se a prorrogação das atividades do aterro não agrava a situação em Marituba e se há uma alternativa sendo estudada. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.

A julgar pelas repetidas decisões judiciais, não será surpreendente se o aterro ainda estiver funcionando quando as delegações estrangeiras desembarcarem em Belém, em 2025.

 

Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/belem-cop-lixo-aterro-sanitario-marituba-denuncias-para/

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